5.09.2006

Apropriação

Podemos dizer que a cibercultura nasce pela apropriação tecnológica.

Como afirma Castells, a cibercultura, ou a sociedade informacional, é fruto da sinergia da Big Science, dos militares e do underground[19]. A cibercultura é, diferentemente da atmosfera eletro-mecânica do começo do século XX, favorável a novas formas de apropriação social dos objetos tecnológicos. O quotidiano é o terreno onde se desenvolve uma maneira, senão inteiramente nova, ao menos inusitada, de relação entre os homens e a tecnologia: a atitude cyberpunk (raiz da cibercultura) é expressão desta batalha contraditória entre os homens e seus artefatos.

(...) As novas possibilidades oferecidas pela revolução da informática permitem que a rua possa influenciar os destinos da tecnologia. Podemos dizer que há um processo de diferenciação social produzido por micropoderes, por ações de grupos ativistas (hackers, cypherpunks, zippies, ravers, etc.) que vão compor o mosaico de forças entre a tecnologia e a vida social. Ao desencantamento do mundo (Max Weber), os cyberpunks propõem a seguinte solução: "sobreviver graças a truques (hacks), piratarias, tráfico de signos, de linguagens, de conexões"[20].

A análise da lógica dos usos, desenvolvida por Jacques Perriault, será útil aqui para entendermos a cibercultura e, mais especificamente, a real participação dos cyberpunks.

De acordo com Perriault, o uso dos objetos tecnológicos não é apenas tributário das estratégias de empreendimentos de acordo com a objetividade da função do objeto, ou de acordo com uma racionalidade técnica intrínseca aos modos de usar (manuais técnicos). Sua hipótese é de que os "usuários têm uma estratégia de utilização dessas máquinas de comunicação"[21]. A sociologia dos usos visa, assim, entender o modo pelo qual usamos os objetos técnicos no quotidiano, descrevendo uma perspectiva que flutua entre a etnometodologia e a psicologia. Talvez seja mais apropriado falar em astúcia dos usos, já que este termo, mais aberto ao imprevisto, escapa à idéia de "lógica", como sustenta Perriault. Sabemos, com De Certeau[22], como os usuários inventam o quotidiano, como eles investem conteúdos simbólicos, imprimindo seus traços na mais banal ação do dia a dia. Não há uma lógica, mas antes uma dialógica complexa (Morin) entre os objetos, os usos e as obrigações funcionais destes mesmos objetos.A apropriação tem sempre uma dimensão técnica (o treinamento técnico, a destreza na utilização do objeto) e uma outra simbólica (uma descarga subjetiva, o imaginário). A apropriação é assim, ao mesmo tempo, forma de utilização, aprendizagem e domínio técnico, mas também forma de desvio (deviance) em relação às instruções de uso, um espaço completado pelo usuário na lacuna não programada pelo produtor/inventor, ou mesmo pelas finalidades previstas inicialmente pelas instituições[23].Pela apropriação está em jogo um certo esvaziamento do totalitarismo do objeto. Como mostra Schwach[24], a sociologia do uso tem por objetivo descortinar o usuário sob o ponto de vista psicológico e sociológico, com o mérito de ter retirado desses estudos os preconceitos anti-tecnológicos. Sabemos que o uso de um objeto tecnológico, do mais simples aos mais complexos, nunca está dado, sendo, também, determinado por suas utilizações. Os sociólogos do uso trabalham com "ideais tipo" weberianos, estando mais interessados em descrições ancoradas, em geral, sobre a vida social e psíquica de cada usuário. As categorias sócio-econômicas rígidas identificam os usos de acordo com velhos diagramas que não consideram nem à subjetividade, nem às influências psicológicas, nem as mudanças culturais mais sutis. De acordo com Schwach, é necessário deixar as portas abertas a um transdisciplinaridade em três níveis: a funcionalidade técnica, os mecanismos psicológicos de apropriação, e o fazer coletivo, sociológico.Segundo Perriault haveria uma linhagem que uniria as máquinas de comunicação aos seus respectivos usos. Esta linhagem é marcada, em toda a história dos media, por um desejo de simulação. A cibercultura estaria, dessa forma, marcada pelas tecnologias da simulação, proporcionando o sentimento de descolamento do aqui e agora, do espaço e do tempo. As tecnologias do virtual seriam então um resultado desse desejo onde "o uso das máquinas de comunicação favorece a criação de redes de sociabilidade (...)".[25]Sendo assim, ao analisar os usuários, devemos superar a perspectiva do uso correto ou não das máquinas de comunicação, marcados para sempre pelo estigma do consumidor passivo e envolvido por uma rede de estratégias dos produtores. Devemos vê-lo como agente. Hoje, se observarmos a dinâmica social da Internet, poderemos identificar, na evolução do uso das máquinas de comunicar, uma certa busca de tactilidade, reforçando ainda mais a apropriação social destas. Como descrevemos em outro trabalho[26], a tactilidade social potencializada pela micro-eletrônica pode ser comprovada pelas inúmeras agregações sociais. Ela é fruto de uma utilização não programada das novas tecnologias, e não um projeto de instâncias superiores. Várias ferramentas disponíveis na Internet foram criadas por usuários de forma a potencializar o lado táctil das novas tecnologias. Assim, o expoente da racionalidade científico-militar transforma-se numa busca planetária por informação e contato. Parece que a afirmação dos processos irracionais (a festa, a violência, a paixão) encontra-se potencializada pelos novos recursos tecnológicos.

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