5.14.2006
Jornalismo pode ajudar a ampliar a cultura científica
Entrevistado: Marcelo Leite, editor de ciência da Folha de S. Paulo
ComCiência - O que o senhor entende por cultura científica?
Marcelo Leite - Eu vejo como um simétrico da cultura literária. Faz parte da cultura geral que as pessoas tenham uma noção de literatura, que saibam ou tenham ouvido falar sobre a época dos principais escritores, artistas plásticos e músicos; o que é música erudita, música popular, jazz, samba, bossa nova, samba canção... Existe essa expectativa de que as pessoas de bom nível cultural conheçam pelo menos a nata da cultura literária e musical do passado e do presente. Por outro lado, não existe essa expectativa de que as pessoas tenham a mesma noção das ciências naturais, o que para mim parece uma distorção de cultura geral. A cultura científica - pelo menos os rudimentos das principais ciências - deveria fazer parte da noção corrente de cultura geral. As pessoas deveriam ter noção do que é e de como funciona uma célula, o que é um átomo ou uma ligação química. Não precisa ser mais do que a base dada no curso secundário, mas o problema é que o ensino de ciências é muito deficitário no Brasil. Além disso, as pessoas fazem questão de esquecer o que aprenderam na escola. Mesmo as pessoas que trabalham comigo dizem até com certo orgulho que são ignorantes em ciência. Eu não sou especialista, sou formado em jornalismo, não tenho uma formação técnica em física ou biologia, mas acho que tenho uma cultura razoável porque sempre me interessei, acompanhei, li bastante, o que é necessário, pois ciência muda muito. Como na literatura, que toda hora sai um livro novo, sempre há pesquisas novas. Não é preciso ser um assinante de Nature ou de Science para acompanhar essa produção, é possível saber pelo jornal diário, isso se não pular as matérias sobre ciência. Pode optar também por assinar uma revista sobre ciência. Tem tantas agora no Brasil: Scientific American, Pesquisa Fapesp, vários sites. É uma questão de interesse. A ciência é cada vez mais importante na nossa vida.
ComCiência - Esse conhecimento seria suficiente para ajudar a sociedade a opinar sobre assuntos como transgênicos, explicar o que é o DNA e outras coisas?
Leite - Eu vejo um longo combate. Demora, vai demorar uma geração ou duas para podermos saber se contribuímos para mudar alguma coisa. O jornalista de ciência faz força nesse sentido. Não tenho pesquisas ou dados que mostrem se melhorou o conhecimento médio das pessoas, mas se eu tivesse que dar um palpite eu diria até que piorou o nível médio da população. O problema é que a média não lê jornal e nem revista, mas entre o público mais informado eu diria que pelo menos o interesse pelo tema de ciência aumentou. Quanto a isso não há dúvida. Não é à toa que tantas revistas de divulgação científica tenham sido lançadas e que a imprensa de cinco ou dez anos para cá começou a dar muito mais espaço para temas de ciência. Há um problema mais conjuntural de diminuição de espaço e de equipes em função da crise econômica, que atingiu a imprensa como um todo. Não dá para ignorar que se o diretor de redação de um grande jornal tiver que cortar espaço de algum lugar não vai cortar linearmente e que algumas áreas do jornal que têm menor impacto noticioso, vão sofrer um pouco mais. Nem foi o caso da Folha, pois quando assumi a editoria, em março de 2000, havia cinco jornalistas e hoje são três. Perdemos 40% da equipe, mas em comparação ao corte geral no jornal, até que não foi dos piores. O fato de a editoria continuar sendo autônoma, como em nenhum outro jornal até onde sei, e ter três pessoas exclusivamente dedicadas com um espaço diário de no mínimo meia página, em face dessa crise toda, eu acho que é uma conquista e é um indicador da perseverança e da determinação editorial do jornal de manter esse setor em alta porque sabemos que o público demanda isso.
ComCiência - O que o faz acreditar que exista essa demanda?
Leite - As pessoas estão - ainda que intuitivamente - percebendo que há uma lacuna na formação delas e que há coisas importantes acontecendo no mundo, como por exemplo os transgênicos, a exploração da Amazônia, a questão da poluição do ar. Todo mundo sabe que o clima está mudando e quer entender as causas disso. Eu costumo comparar a situação do jornalismo científico com a do jornalismo econômico. Há vinte anos, pouca gente entendia coisas básicas sobre economia, como balança de pagamentos, balança comercial, índice de inflação. Hoje muita gente que não é economista consegue entender esses termos. Isso porque em face da importância que a macroeconomia adquiriu na vida das pessoas, principalmente na época de hiperinflação, as editorias de economia dos jornais começaram a se especializar, os jornalistas foram estudar, começaram a fazer mais análises e as pessoas passaram a ter mais conhecimento e até autonomia para pensar sobre o tema e formar opiniões. Eu acho que o jornalismo científico vive um processo similar.
(...)
ComCiência - Em geral, a credibilidade em relação ao que a imprensa não especializada publica sobre ciência é muito baixa. A que você atribuiria isso?
Leite - Depende muito. A televisão eu entendo perfeitamente. O tratamento de ciência na televisão às vezes é muito bom e às vezes é muito ruim. Mas, em princípio, eu acho que as pessoas muitas vezes não entendem as notícias sobre ciência. Tem também a questão dos veículos - aí precisaria analisar um por um - que são muito sensacionalistas. Mas eu acho que a sucessão de informações que contradizem informações anteriores - eu costumo dar o exemplo de uma hora dizem que é para comer ovo, outra hora que não se deve comer ovo - acaba deixando as pessoas muito desorientadas. Basta dizer na TV ou no jornal: "pesquisa americana diz que...", que as pessoas acreditam, e não têm que acreditar. Que pesquisa? De que universidade? Saiu onde? As pessoas precisam aprender a se perguntar isso. Ou os jornalistas têm que assumir essa função. Claro que não é todo mundo que sabe que a Universidade Johns Hopkins é mais importante que a Universidade de Minnesota mas o jornalista tem que ter essa noção e tem que passar isso no texto dele, para situar o leitor ou telespectador. O jornalista não pode sair vendendo pesquisa ruim como se fosse uma coisa importantíssima. Não é porque é feita no exterior que é boa. Tem muita porcaria feita nos Estados Unidos. Fora intenção de fazer propaganda. Saiu há pouco tempo um anúncio publicitário no jornal: "professor da Universidade Federal de Santa Catarina vende quitina de casca de camarão e diz que cura câncer". Se eu fosse o reitor processaria o cara porque está usando o nome da universidade. E as pessoas acreditam porque a instituição dá esse peso.
ComCiência - É o peso da imagem do cientista como o detentor do conhecimento?
Leite - Pois é, mas é nossa função mostrar para as pessoas como funciona o processo de crítica científica, de avaliação, mas é difícil. É aquele problema da cultura científica que falamos no começo. Cultura geral falta de modo geral no nosso país; cultura científica então, nem se fala. Mas a gente continua tentando, aos poucos avançamos.
http://www.comciencia.br/entrevistas/cultura/leite.htm
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